segunda-feira, 30 de outubro de 2017

[Crônica] Celso na Basílica

O Bosque dos Bolados sempre foi meu lar, antes mesmo do cataclisma. Agora, preciso dividi-lo. Pois do Bosque dos Bolados e das Montanhas dos miseráveis eles tiraram pedras, paus e ferro para erguer a Basílica.
O mundo está diferente. O Sol ainda nasce ao leste e se põe a oeste. Mas hoje, ao invés de ascender ao zênite, ele ergue-se 1/5 do caminho, transcreve uma parábola para o norte e começa a cair, chegando ao horizonte no poente.
O mundo se tornou um eterno crepúsculo com esse "problema de cambagem" do mundo... e o Sul se tornou a terra onde o sol não bate.
Se eu fosse um homem melhor, eu teria participado das obras da Basílica. Diabos, se eu tivesse mais fibra estaria lá durante a batalha. Mas sou apenas um símio que cansou de sua vida natural. Que quis a liberdade, e teria de ser um bom vizinho agora.
Por sobre a copa das árvores a cúpula reluzente. Tinha alguns dias desde a minha última visita, mas agora parecia que, se não de todo pronto, o templo deveria estar apto a receber os refugiados. Decido enfim ir ao local da derradeira peregrinação. Salto sobre galhos e penduro-me em cipós, até que o descampado produzido pela extração de madeira me força ao solo, de onde caminho até a grande obra.
Vejo-me pisando em barro vermelho, ante uma vala por onde um caudaloso córrego passa. Não é muito volumoso. Mas as imperfeições da escavação o tornava um obstáculo para atravessar.
Colunas paralelas de granito desenhava um círculo ao redor de um obelisco... "O Monumento ao Comentarista Banido". Deveria haver algum simbolismo naquela obra de arte que introduz a construção, mas minha insensibilidade racional não a captava. Para mim, era uma pedra que os obreiros não tiveram disposição de retira-lo. E ficavam lá à sua sombra, domando café e fazendo cocô.
Alguém mais pensava isso. Ele usava robes monísticos, com a faixa vermelha no braço, dando a ele a distinção das lideranças daquele templo. Na faixa, um padrão em preto espelhando um velho símbolo do budismo. Era uma afronta às deidades que deram as costas aos formadores daquela irmandade.
- ONDE ESTÁ A PONTE! – Urro eu, tentando fazer minha voz superar as águas do córrego.
- O QUE?!? – O pretor, aparentemente, não ouvira.
- PONTE! – Insisto, e percebo que ele se aproximava, o que facilitaria a comunicação. – COMO EU ATRAVESSO?
- VOCÊ PULA!! – Fala ele com uma naturalidade que fez eu me sentir uma criança tola.
Olho para o córrego. Não era um desafio para alguém com minha saúde e agilidade, mas estava longe de ser convidativo. Talvez fosse alguma "provação religiosa", ou simbolismo como a pedra no meio do círculo.
Salto sobre o córrego. Estava agora no território da Basílica. O piso era de pedras polidas. Poderia se passar por azulejo, mas eu sabia melhor. Contorno o "Monumento" e finalmente vejo o prédio principal, um prédio quadrado mas esquinado por torreões, com janelas longínquas a partir do segundo piso, e embora estivesse assentada no lado oposto do prédio, a Cúpula do Blocão, que dava o ar templário ao prédio. Uma última peça oriunda do tempo em que havia zênite na passagem do sol.
- Então, é nisso que trabalhavam esse tempo todo? – Pergunto, puxando conversa.
- É um começo. – Fala o monge. – Era isso ou aceitar a desgraça sobre todos os nossos irmãos.
Após o círculo no monumento, ainda haviam colunas desenhando um caminho – agora mais direto – até os portões de carvalho da basílica. Entre suas colunas, buscando alguma sombra mais reconfortante, aqueles que ainda não aceitavam bem a Grande Perda. Eles liam os textos antigos, e as regras que guiaram tantos. Doze delas sagradas, uma profana... se muito não me engano.
- Vocês vão aceitar "Qualquer" um? – Minha pergunta era válida. Mesmo dentre aqueles nas sombras tinham desde quem provocou o cataclisma, quem apoiou o cataclisma, e mesmo quem nos venderia ás deidades por um mero pedaço de pano com o rosto bordado deles.
- Estamos ponderando ainda. Nada é definitivo. – Fala o pretor. – Estávamos nos afogando. Era nos agarrar ao que tivesse a nosso alcance ou aceitar a morte. Não vemos como possamos julgar uma ou outra ideologia. Creio que devamos ser tolerantes a todos.
- Todos não. – Eu falo sugerindo, mas soou como uma ordem, vejo agora. – Nunca aos intolerantes.
- Mas isso faria de nós os intolerantes, não?
- "O Ser e o Nada". Satre. – Cito. – A liberdade é uma limitação em si. A "total" liberdade é um paradoxo. Se "tolerar" quem não "tolera", estes ganham força, e logo destruiriam a tolerância. Deveria haver uma lei nos antigos tomos que previne que a busca pela bondade absoluta acabe com a obra.
- "O Amor não Constrói Nada". – Fala o pretor. Era justamente a primeira lei. Vi naquele momento que interpretei todo errado por muito tempo.
Os portões se abrem. O interior estava mais acabado que o exterior, embora faltassem os viveres. A poeira tinha sido varrida. Três sacristias estavam completas. Um pátio elevado imediatamente abaixo da Cúpula e entre nós e essas estruturas, mais um porão onde um cowboy esquisito carregava caixas profanas, o salão.
- Homens dos nove gêneros, capivaras e lagartos. E tantos mais quantos pedirem serão ouvidos aqui. – Informa o pretor. – Diariamente. Vai levar algum tempo, mas a normalidade deve retornar às vidas de...
- Creio que essa já era. – Falo com um pouco de revolta na voz. – A normalidade jamais voltará. A traição foi grande demais.
- Novamente... estávamos nos afogando. – Ele repetia a metáfora. – Vamos nos segurar em nossas vidas antigas. Nossa irmandade. Vamos rir uns dos outros. Brigar por mediocridades políticas. Paralelamente, vamos trabalhar nossa espiritualidade para que o que causou o cataclisma seja sanado. E se isso não der certo...
- Nos afogaremos? – Falo com ironia.
- Sim... e arrastaremos conosco o que pudermos agarrar.
Havia uma sobriedade na voz dele. Claro, estávamos limitados pela mortalidade. Mas saber que não iríamos calados ao fundo das águas foi decisivo ao me fazer dar uma chance à Basílica.

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